BEM VINDO

Animum exerce in optimis rebus

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

O Banquete - Introdução

O BANQUETE
Platão
Platão
INTRODUÇÃO


(Apolodoro e um Companheiro)

APOLODORO

- Creio que a respeito do que quereis saber não estou sem preparo. Com efeito, subia eu há pouco à cidade, vindo de minha casa em Falero, quando um conhecido atrás de mim avistou-me e de longe me chamou, exclamando em tom de brincadeira: “Falerino! Eh, tu, Apolodoro! Não me esperas?” Parei e esperei. E ele disse-me: “Apolodoro, há pouco mesmo eu te procurava, desejando informar-me do encontro de Agatão, Sócrates, Alcibíades, e dos demais que então assistiram ao banquete, e saber dos seus discursos sobre o amor, como foram eles. Contou-nos uma outra pessoa que os tinha ouvido de Fênix, o filho de Filipe, e que disse que também tu sabias. Ele porém nada tinha de claro a dizer. Conta-me então, pois és o mais apontado a relatar as palavras do teu companheiro. E antes de tudo, continuou, dize-me se tu mesmo estiveste presente àquele encontro ou não.” E eu respondi-lhe: “É muitíssimo provável que nada de claro te contou o teu narrador, se presumes que foi há pouco que se realizou esse encontro de que me falas, de modo a também eu estar presente. Presumo sim, disse ele. De onde, ó Glauco?, tornei-lhe. Não sabes que há muitos anos Agatão não está na terra, e desde que eu freqüento Sócrates e tenho o cuidado de cada dia saber o que ele diz ou faz, ainda não se passaram três anos? Anteriormente, rodando ao acaso e pensando que fazia alguma coisa, eu era mais miserável que qualquer outro, e não menos que tu agora, se crês que tudo se deve fazer de preferência à filosofia”. “Não fiques zombando, tornou ele, mas antes dize-me quando se deu esse encontro”. “Quando éramos crianças ainda, respondi-lhe, e com sua primeira tragédia Agatão vencera o concurso, um dia depois de ter sacrificado pela vitória, ele e os coristas. Faz muito tempo então, ao que parece, disse ele. Mas quem te contou? O próprio Sócrates? Não, por Zeus, respondi-lhe, mas o que justamente contou a Fênix. Foi um certo Aristodemo, de Cidateneão, pequeno, sempre descalço; ele assistira à reunião, amante de Sócrates que era, dos mais fervorosos a meu ver. Não deixei todavia de interrogar o próprio Sócrates sobre a narração que lhe ouvi, e este me confirmou o que o outro me contara. Por que então não me contou? tornou-me ele; perfeitamente apropriado é o caminho da cidade a que falem e ouçam os que nele transitam.” E assim é que, enquanto caminhávamos, fazíamos nossa conversa girar sobre isso, de modo que, como disse ao início, não me encontro sem preparo. Se, portanto é preciso que também a vós vos conte, devo fazê-lo. Eu, aliás, quando sobre filosofia digo eu mesmo algumas palavras ou as ouço de outro, afora o proveito que creio tirar, alegro-me ao extremo; quando, porém, se trata de outros assuntos, sobretudo dos vossos, de homens ricos e negociantes, a mim mesmo me irrito e de vós me apiedo, os meus companheiros, que pensais fazer algo quando nada fazeis. Talvez também vós me considereis infeliz, e creio que é verdade o que presumis; eu, todavia, quanto a vós, não presumo, mas bem sei.

COMPANHEIRO

- És sempre o mesmo, Apolodoro! Sempre te estás maldizendo, assim como aos outros; e me pareces que assim sem mais consideras a todos os outros infelizes, salvo Sócrates, e a começar por ti mesmo. Donde é que pegaste este apelido de “Mole”, não sei eu; pois em tuas conversas és sempre assim, contigo e com os outros esbravejas, exceto com Sócrates.

APOLODORO

- Caríssimo, e é assim tão evidente que, pensando desse modo tanto de mim como de ti, estou eu delirando e desatinando?

COMPANHEIRO

- Não vale a pena, Apolodoro, brigar por isso agora; ao contrário, o que eu te pedia, não deixes de fazê-lo; conta quais foram os discursos.

APOLODORO

Foram eles em verdade mais ou menos assim... Mas antes é do começo, conforme me ia contando Aristodemo, que também eu tentarei contar-vos. Disse ele que o encontrara Sócrates, banhado e calçado com as sandálias, o que poucas vezes fazia; perguntou-lhe então onde ia assim tão bonito. Respondeu-lhe Sócrates:

- Ao jantar em casa de Agatão. Ontem eu o evitei, nas cerimônias da vitória, por medo da multidão; mas concordei em comparecer hoje. E eis por que me embelezei assim, a fim de ir belo à casa de um belo. E tu - disse ele – que tal te dispores a ir sem convite ao jantar?

- Como quiseres - tomou-lhe o outro.

- Segue-me, então - continuou Sócrates - e estraguemos o provérbio, alterando-o assim: “A festins de bravos, bravos vão livremente.” Ora, Homero parece não só estragar mas até desrespeitar este provérbio; pois tendo feito de Agamenão um homem excepcionalmente bravo na guerra, e de Menelau um “mole lanceiro”, no momento em que Agamenão fazia um sacrifício e se banqueteava, ele imaginou Menelau chegado sem convite, um mais fraco ao festim de um mais bravo.
Ao ouvir isso o outro disse:

- É provável, todavia, ó Sócrates, que não como tu dizes, mas como Homero, eu esteja para ir como um vulgar ao festim de um sábio, sem convite. Vê então, se me levas, o que deves dizer por mim, pois não concordarei em chegar sem convite, mas sim convidado por ti.

- Pondo-nos os dois a caminho - disse Sócrates - decidiremos o que dizer.

Após se entreterem em tais conversas, dizia Aristodemo, eles partem. Sócrates então, como que ocupando o seu espírito consigo mesmo, caminhava atrasado, e como o outro se detivesse para aguardá-lo, ele lhe pede que avance. Chegado à casa de Agatão, encontra a porta aberta e aí lhe ocorre, dizia ele, um incidente cômico. Pois logo vem-lhe ao encontro, lá de dentro, um dos servos, que o leva onde se reclinavam os outros, e assim ele os encontra no momento de se servirem; logo que o viu, Agatão exclamou:

- Aristodemo! Em boa hora chegas para jantares conosco! Se vieste por algum outro motivo, deixa-o para depois, pois ontem eu te procurava para te convidar e não fui capaz de te ver. Mas... e Sócrates, como é que não no-lo trazes?

- Voltando-me então - prosseguiu ele - em parte alguma vejo Sócrates a me seguir; disse-lhe eu então que vinha com Sócrates, por ele convidado ao jantar.

- Muito bem fizeste - disse Agatão; - mas onde está esse homem?

- Há pouco ele vinha atrás de mim; eu próprio pergunto espantado onde estaria ele.

- Não vais procurar Sócrates e trazê-lo aqui, menino? - exclamou Agatão. - E tu, Aristodemo, reclina-te ao lado de Erixímaco.

Enquanto o servo lhe faz ablução para que se ponha à mesa, vem um outro anunciar:

- Esse Sócrates retirou-se em frente dos vizinhos e parou; por mais que eu o chame não quer entrar.

- É estranho o que dizes - exclamou Agatão; - vai chamá-lo! E não mo largues!

Disse então Aristodemo:

- Mas não! Deixai-o! É um hábito seu esse: às vezes retira-se onde quer que se encontre, e fica parado. Virá logo porém, segundo creio. Não o incomodeis portanto, mas deixai-o.

- Pois bem, que assim se faça, se é teu parecer - tornou Agatão. - E vocês, meninos, atendam aos convivas.
Vocês bem servem o que lhes apraz, quando ninguém os vigia, o que jamais fiz; agora portanto, como se também eu fosse por vocês convidado ao jantar, como estes outros, sirvam-nos a fim de que os louvemos.

Depois disso - continuou Aristodemo - puseram-se a jantar, sem que Sócrates entrasse. Agatão muitas vezes manda chamá-lo, mas o amigo não o deixa. Enfim ele chega, sem ter demorado muito como era seu costume, mas exatamente quando estavam no meio da refeição. Agatão, que se encontrava reclinado sozinho no último leito, exclama:

- Aqui, Sócrates! Reclina-te ao meu lado, a fim de que ao teu contato desfrute eu da sábia idéia que te ocorreu em frente de casa. Pois é evidente que a encontraste, e que a tens, pois não terias desistido antes.
Sócrates então senta-se e diz:

- Seria bom, Agatão, se de tal natureza fosse a sabedoria que do mais cheio escorresse ao mais vazio, quando um ao outro nos tocássemos, como a água dos copos que pelo fio de lã escorre do mais cheio ao mais vazio. Se é assim também a sabedoria, muito aprecio reclinar-me ao teu lado, pois creio que de ti serei cumulado com uma vasta e bela sabedoria. A minha seria um tanto ordinária, ou mesmo duvidosa como um sonho, enquanto que a tua é brilhante e muito desenvolvida, ela que de tua mocidade tão intensamente brilhou, tornando-se anteontem manifesta a mais de trinta mil gregos que a testemunharam.

- És um insolente, ó Sócrates - disse Agatão. - Quanto a isso, logo mais decidiremos eu e tu da nossa sabedoria, tomando Dioniso por juiz; agora porém, primeiro apronta-te para o jantar.

Depois disso - continuou Aristodemo - reclinou-se Sócrates e jantou como os outros; fizeram então libações e, depois dos hinos ao deus e dos ritos de costume, voltam-se à bebida. Pausânias então começa a falar mais ou menos assim: - Bem, senhores, qual o modo mais cômodo de bebermos? Eu por mim digo-vos que estou muito indisposto com a bebedeira de ontem, e preciso tomar fôlego - e creio que também a maioria dos senhores, pois estáveis lá; vede então de que modo poderíamos beber o mais comodamente possível. Aristófanes disse então: - É bom o que dizes, Pausânias, que de qualquer modo arranjemos um meio de facilitar a bebida, pois também eu sou dos que ontem nela se afogaram.

Ouviu-os Erixímaco, o filho de Acúmeno, e lhes disse:
- Tendes razão! Mas de um de vós ainda preciso ouvir como se sente para resistir à bebida; não é, Agatão?

- Absolutamente - disse este - também eu não me sinto capaz.

- Uma bela ocasião seria para nós, ao que parece – continuou Erixímaco - para mim, para Aristodemo, Fedro e os outros, se vós os mais capazes de beber desistis agora; nós, com efeito, somos sempre incapazes; quanto a Sócrates, eu o excetuo do que digo, que é ele capaz de ambas as coisas e se contentará com o que quer que fizermos. Ora, como nenhum dos presentes parece disposto a beber muito vinho, talvez, se a respeito do que é a embriaguez eu dissesse o que ela é, seria menos desagradável. Pois para mim eis uma evidência que me veio da prática da medicina: é esse um mal terrível para os homens, a embriaguez; e nem eu próprio desejaria beber muito nem a outro eu o aconselharia, sobretudo a quem está com ressaca da véspera.

- Na verdade - exclamou a seguir Fedro de Mirrinote – eu costumo dar-te atenção, principalmente em tudo que dizes de medicina; e agora, se bem decidirem, também estes o farão. Ouvindo isso, concordam todos em não passar a reunião embriagados, mas bebendo cada um a seu bel-prazer.

- Como então - continuou Erixímaco - é isso que se decide, beber cada um quanto quiser, sem que nada seja forçado, o que sugiro então é que mandemos embora a flautista que acabou de chegar, que ela vá flautear para si mesma, se quiser, ou para as mulheres lá dentro; quanto a nós, com discursos devemos fazer nossa reunião hoje; e que discursos - eis o que, se vos apraz, desejo propor-vos.

Todos então declaram que lhes aprazia e o convidam a fazer a proposição.

Disse então Erixímaco:

- O exórdio de meu discurso é como a Melanipa de Eurípides; pois não é minha, mas aqui de Fedro a história que vou dizer. Fedro, com efeito, freqüentemente me diz irritado: “Não é estranho, Erixímaco, que para outros deuses haja hinos e peãs, feitos pelos poetas, enquanto que ao Amor todavia, um deus tão venerável e tão grande, jamais um só dos poetas que tanto se engrandeceram fez sequer um encômio? Se queres, observa também os bons sofistas: a Hércules e a outros eles compõem louvores em prosa, como o excelente Pródico - e isso é menos de admirar, que eu já me deparei com o livro de um sábio em que o sal recebe um admirável elogio, por sua utilidade; e outras coisas desse tipo em grande número poderiam ser elogiadas; assim portanto, enquanto em tais ninharias despendem tanto esforço, ao Amor nenhum homem até o dia de hoje teve a coragem de celebrá-lo condignamente, a tal ponto é negligenciado um tão grande deus!” Ora, tais palavras parece que Fedro as diz com razão. Assim, não só eu desejo apresentar-lhe a minha quota e satisfazê-lo como ao mesmo tempo, parece-me que nos convém, aqui presentes, venerar o deus. Se então também a vós vos parece assim, poderíamos muito bem entreter nosso tempo em discursos; acho que cada um de nós, da esquerda para a direita, deve fazer um discurso de louvor ao Amor, o mais belo que puder, e que Fedro deve começar primeiro, já que está na ponta e é o pai da idéia.

- Ninguém contra ti votará, ó Erixímaco - disse Sócrates. – Pois nem certamente me recusaria eu, que afirmo em nada mais ser entendido senão nas questões de amor, nem sem dúvida Agatão e Pausânias, nem tampouco Aristófanes, cuja ocupação é toda em tomo de Dioniso e de Afrodite, nem qualquer outro destes que estou vendo aqui. Contudo, não é igual a situação dos que ficamos nos últimos lugares; todavia, se os que estão antes falarem de modo suficiente e belo, bastará. Vamos pois, que em boa sorte comece Fedro e faça o seu elogio do Amor. Estas palavras tiveram a aprovação de todos os outros, que também aderiram às exortações de Sócrates. Sem dúvida, de tudo que cada um deles disse, nem Aristodemo se lembrava bem, nem por minha vez eu me lembro de tudo o que ele disse; mas o mais importante, e daqueles que me pareceu que valia a pena lembrar, de cada um deles eu vos direi o seu discurso.

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