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Animum exerce in optimis rebus

quinta-feira, 11 de junho de 2009

VIVER COM METADE DA ALMA

VIVER COM METADE DA ALMA: AGOSTINHO E O SOFRIMENTO

 

Agostinho descreve duas grandes experiências de sofrimento nas Confissões. Na primeira, no livro 4, ele narra a sua reação juvenil à morte de um amigo. A descrição do sofrimento é aí entrelaçada de reflexões sobre a amizade que ecoam temas dos livros finais da Ética a Nicômaco de Aristóteles, especialmente a idéia do amigo como um outro eu. Porque ele vive fora de si mesmo, extravasando de sua alma, “como a água sobre a areia” (4, 8), o jovem Agostinho sente o sofrimento como uma desorientadora perda de si. Ele torna-se um enigma para si mesmo – um estranho, atormentado em seu próprio país e se achando mesmo em sua própria casa uma “grotesca permanência de infelicidade”. Lugares familiares tornam-se insuportáveis na experiência desta nova e estranha ausência, pois eles não mais sussurram: “Aí vem ele!” como teriam feito tivesse ele estado ausente apenas por um curto período (4,4).

 

 

Na experiência imediata da dor, Agostinho não consegue entender o que está acontecendo em sua própria alma. Refletindo sobre isso no presente, na memória, ele chega a entender o que está faltando na aparente posse de si mesmo anterior à morte do amigo. A sua infelicidade, isso lhe parece no presente, veio do fato de sua alma estar dirigida para fora de si mesmo – de estar amarrada pelo amor das coisas que são incapazes de durar” de tal modo que agora se encontra agoniado de perdê-las (4,6). As reflexões sobre suas perdas do passado tornam visíveis as falhas nos seus primeiros amores. Ele tinha amado algo que é mortal como se este algo pudesse não morrer nunca, como algo mais do que humano. Esse defeito do amor deu a sua alma “uma carga, machucada e sangrando”, que ele era incapaz de suportar. A perda de um amigo amado como um outro eu tornou a alma um peso para si mesma. Mas esta perda pena torna visível um estado miserável de separação de si mesmo que já estava presente, estimulada pela atração a algo de exterior. “Nem o charme da região campestre nem os perfumes de um jardim podia suavizar isso...Tudo o que não era o que ele tinha sido parecia estúpido e sem sabor. Para onde ele poderia ir a fim de deixar a si mesmo para trás?” (4,7)

 

Com o eu atrelado com o que lhe é exterior, o sofrimento mistura-se com o medo da morte. Agostinho se sente obcecado por um “sentimento estranho”, que é o oposto do desejo altruístico de amigos prontos a morrer um pela segurança do outro. Doente e cansado de viver, ainda assim ele teme a morte. A morte, que levou embora o seu amigo, parece ser o mais terrível dos inimigos, provavelmente a apanhar também todos os outros sem aviso. Ele se admira de que alguns homens possam viver quando seu amigo está morto, o tendo amado como se ele não fora morrer nunca. E se admira mais ainda de que ele mesmo, tendo sido aquele o seu “segundo eu”, “a metade de sua alma”, possa permanecer vivo. “Eu sentia como se nossas duas almas fossem uma só, vivendo em dois corpos, e a vida para mim era cheia de medo porque eu não queria viver com apenas metade da alma. Talvez isso também se devesse ao fato de eu ter me encolhido por causa da morte, pelo medo de que alguém que eu tanto amara pudesse então estar completamente morto” (4,6).

 

Agostinho é libertado deste primeiro sofrimento pela passagem do tempo e pela possibilidade de que o tempo traz de novas amizades. O tempo, que nunca estaciona nem passa ociosamente sem afetar os sentimentos, opera as suas maravilhas na mente. Enquanto o tempo passa, ele enche Agostinho de fresca esperança e novos pensamentos. Pouca a pouco ele junta novamente suas peças por meio de antigos prazeres que ele experimentara uma vez. Mas o tempo, ao trazer novos atrativos, traz também nova vulnerabilidade – nova escravidão do coração pela “imensa fábula” da amizade. – “a grande mentira que não morre com a morte de qualquer amigo” (4,8).   

 

A poderosa evocação feita por Agostinho dos prazeres da amizade, no livro 4, capítulo 8, é uma faca de dois gumes. O mútuo ensino e aprendizado, o sorriso e a bondade, o prazeroso compartilhar sobre livros, as tristezas pelas ausências e a alegria das boas vindas nos retornos, são sinais de afeição entre amigos. Sinais lidos nas faces e nos olhos, ditos pela língua e expressos em incontáveis atos de bondade, tudo “a acender uma chama para fundir nossos corações e soldá-los em um só”. Porém, carregam em si “o germe da tristeza por vir”. As delícias da amizade, especialmente aquelas ligadas aos prazeres das palavras faladas, estão tramadas como numa fábula, uma longa e estruturada mentira que nossas mentes “estão sempre ávidas por ouvir apenas para serem desonradas por suas adúlteras carícias” (4,8). Agostinho ama esta fábula, ao invés de amar a Deus. A passagem do tempo, apesar de ser um curativo para um sofrimento específico, é em si mesmo uma fonte de angústia, como ele vê no presente – pela separação e fragmentação interior do eu.

 

O que a passagem do tempo não consegue liberar, no entanto, Agostinho encontra na sua atividade de narrar. Reflexões sobre a memória, que prenunciam a discussão mais extensa sobre o tempo que virá mais tarde (no livro 11), produz o tipo de autoconhecimento no qual ele enxerga a sua libertação da angústia provocada pela experiência temporal. A memória, um tipo de “estômago da mente”, na qual se pode refletir sobre a dor sem sentir dor lhe permite recuperar-se a si mesmo (10, 14). Através da auto reflexão ele se volta do amor pelas coisas cambiantes – dos amigos concebidos como outros eus – para o seu próprio eu. Suas reflexões sobre os sofrimentos do passado, e na memória, por meio da qual ele pode assim refletir, aí ele prepara o caminho para a descoberta da distensão da lama, distensão esta que lhe proporcionará tanto entender como escapar da aflição do que é temporal. O vôo destruidor do tempo rumo a não existência é computado pela ação da memória. Tendo encontrado em sua própria alma o ato de atenção que aproxima em toda sua globalizante presença o “presente permanente” da eternidade, ele agora estará livre para amar todas as coisas cambiantes e mortais em Deus, que nunca se perde. Não mais apegada ao que é exterior, e conseqüentemente sem prender tristezas à alma, ele agora está livre para um novo tipo de alegria.

 

O segundo grande episódio de sofrimento rememorado por Agostinho em sua narração refere-se à morte de sua mãe, Mônica. Está separado da primeira experiência dolorosa pelo crucial evento, que é o ponto central nas Confissões – a sua conversão ao cristianismo. Agora ele já sabe da “sabedoria eterna” que cria “todas as coisas que já se passaram e todas as coisas que ainda serão”, enquanto em si mesma, “simplesmente é”, sem se sujeitar ao passado ou ao futuro. A morte de Mônica é precedida de uma conversa na qual ela fala com Agostinho sobre a sabedoria eterna. Eles sentem suas mentes se tocarem, ele nos conta, por um instante fugaz, antes de retornar ao som de sua conversa, na qual cada palavra tem um começo e um fim (9,10).

 

Iluminado por esse momento de contato com a eternidade, Agostinho, como se poderia esperar, apresenta essa segunda experiência de sofrimento num marcante contraste com a anterior, ainda que sua resposta emocional imediata a ela, para sua aflição, não estivesse inteiramente de acordo com o que ele presentemente sabe a respeito do tempo e da eternidade. A “grande onda de tristeza” (9,12) que surge em seu coração está, ele acha, em desacordo com suas crenças religiosas, e sua infelicidade em se descobrir uma vítima tão fraca dessas emoções humanas torna-se uma fonte adicional de tristeza. Aflito por causa de seus próprios sentimentos, ele é atormentado por uma “agonia duplicada” (9,12). Ele se encontra mergulhado novamente na perturbação e opressão do sofrimento. Mas pouco a pouco, a memória retorna, trazendo-lhe de volta os seus antigos sentimento por sua mãe, acompanhados do conforto das lágrimas.

 

Na sua discussão anterior sobre o sofrimento, Agostinho refletia sobre o fato de serem doces as lágrimas para aqueles que sofrem, mas não encontrou uma resposta clara. Agora, o choro tornou-se a expressão de uma esperança que o ilude diante da morte do amigo. “Eu não tinha esperança de que ele voltasse a viver novamente, nem implorava por isso através das lágrimas. Eu apenas sofria e chorava, pois meu coração estava perdido e eu perdera a minha alegria” (4,5). Naquela ocasião, ele julgava que as lágrimas seriam doces simplesmente porque elas tomam o lugar do amigo no coração (4,4). O seu novo sofrimento, em contraste, se integra em sua própria confissão e se transforma em uma prece para a alma de sua mãe. As lembranças são reunidas num movimento para frente, na esperança da vida eterna.

 

A nova fé religiosa de Agostinho transforma este sofrimento em uma experiência diferente daquela anterior, de desesperança em face da perda, mesmo se seus sentimentos se demoram ainda em seu intelecto. As duas experiências de sofrimento manifestam duas respostas diversas ao tempo. No segundo episódio, a passagem destrutiva do tempo é moldada pela jornada da alma rumo à eternidade. A lembrança do que ele perdeu não é mais uma fonte de infelicidade, mas um deleite nesta vida que traz consigo as sementes da transformação no contato com o eterno. A eternidade não é aqui um vazio abstrato em contrate com a realidade do tempo e sim uma plenitude de presença a ser obtida após a morte – uma plenitude em direção à qual a alma se esforça durante a vida e da qual ela consegue instantâneos ocasionais. Esta mudança na ressonância emocional do sofrimento prenuncia a discussão posterior sobre o tempo. A distensão da alma na memória, apesar de ser, em si mesma, uma fonte de angústia na falta de uma auto presença, torna-se - por meio do ato narrativo centralizado no significado de sua conversão - a base para se alcançar um tipo diferente, do tempo para a eternidade. O “problema” do tempo se resolve encontrando a unidade no meio da fragmentação. Esta unificação dos fragmentos da experiência é resumida na memória, articulada por meio de metáforas extraídas da unidade do discurso falado e atualizada na narrativa autobiográfica.

 

A memória representa, para Agostinho, o voltar-se da alma para o seu íntimo, para longe das delícias do mundo exterior apanhadas pelos sentidos, para procurar pelo bom e pelo eterno dentro de si mesmo. A busca ecoa as famosas passagens do banquete, de Platão que descrevem a ascensão da alma, desde as coisas do mundo sensível em direção às Formas do mundo inteligível, conhecidas por meio das faculdades superiores da alma. Na versão augustiniana desta jornada, a memória representa um estágio superior aos sentidos, marcando a volta crucial para o íntimo que produzirá o desejado contato com o eterno. Para alcançar Deus, ele pensa, deve-se atingir a auto reflexão a partir dos sentidos, que ele compartilha com os animais, até o poder extraordinário da memória humana. Ele compara a memória com “um grande campo ou um espaçoso palácio”, um “depósito para incontáveis imagens de todos os tipos, que são para aí transportadas pelos sentidos” (10,8). Em suas várias salas estão o céu, a terra, o sol, prontos para serem invocados. Mas a memória, além de trazer o mundo todo para o eu, também contém o próprio eu. Ele se acha, junto com outras coisas, dentro deste vasto e incomensurável santuário; e, todavia, isso é uma faculdade da sua alma.

 

 

A reflexão sobre a memória torna o eu objeto de admiração – uma admiração anteriormente reservada à contemplação do mundo “com suas altas montanhas, as fortes ondas do mar, as largas margens dos rios, o oceano que circula o mundo ou as estrelas em seu curso” (10,8). Apesar desta busca da alma levá-la para além da memória, em direção ao intelecto, num certo sentido a memória representa melhor esta mudança crucial para o eu, encerrando em seus compartimentos até mesmo esta suposta faculdade superior, que é o intelecto. Para Agostinho, a memória retém certa primazia no entendimento da natureza da mente. Mente e memória são, diz ele, uma só e mesma coisa (10,14). Entender a memória é entender o eu: “Estou trabalhando duro neste campo e o campo de meu trabalho é o meu próprio eu” (10,16). Ele tornou-se um problema para o eu – um problema a ser resolvido por meio da investigação do seu eu, da sua memória, da sua mente. Por mais inspirador de admiração que seja o profundo poder da memória, ele se identifica com sua mente, consigo mesmo.

 

Que sou eu, então, meu Deus? Qual é a minha natureza? Uma vida que está sempre variando, cheia de mudanças e de imenso poder. Os vastos planos da memória e suas inumeráveis cavernas e buracos estão cheias além da conta de incontáveis coisas de todos os tipos... Minha mente tem a liberdade de todas elas. Posso ir de uma a outra. Posso sondar profundamente nelas e jamais atingirei o seu fim. Eis o poder da memória! Essa é a grande força da vida no homem vivo, ainda que seja mortal. (10,17)

 

O intelecto pode transcender essa espécie de memória que retém as imagens sensíveis, apanhando ao invés “os próprios fatos em si mesmos” (10,10). Mas mesmo essa façanha do intelecto é modelada pela memória. O poder do intelecto reside justamente na sua capacidade de juntar coisas que, apesar de misturadas e confusas, já estão contidas na memória: “uma vez que estão dispersas, tenho que coletá-las novamente e esta é a derivação do verbo cogitare, que quer dizer pensar ou coletar os pensamentos de alguém” (10,11). A memória, com sua capacidade de tornar presentes todas as coisas produz a chave para a idéia de eternidade. É como uma réplica mental do mundo, mas contém mais – o intelecto e o próprio Deus. Torna-se possível, dessa forma, entender e lidar com o tempo, que engana a alma nos seus pensamentos a respeito do mundo físico como objeto. Mesmo Deus imutável se digna a estar presente na memória e forma aí um “abrigo seguro” para a mente. A memória fornece o material para reflexão que conduz Agostinho a encontrar em Deus o “lugar de ajuntamento” para suas “partes dispersas”; e como uma espécie de estômago da mente, retendo a experiência sem o seu “sabor” original, ela conduz a reflexão que é impedida pela imediatez das emoções. A memória e o auto conhecimento pertencem, assim, um ao outro. O voltar-se do mundo para o eu que ela resume produz um auto conhecimento no qual Agostinho encontrará o divino. O eu torna-se visível por meio de um tipo de desligamento – ele se retira do mundo sem mente para voltar sua atenção para a consciência. É esta incapacidade do mundo sem mente do movimento físico em revelar o que está envolvido em ser uma mente, capaz de entender o tempo e a eternidade, que Agostinho salientará na discussão sobre a natureza do tempo no livro 11. Vamos agora dar uma olhada em sua própria avaliação do que seja ser no tempo em relação ao que ele vê como as inadequações do tratamento aristotélico das relações entre tempo e consciência.