BEM VINDO

Animum exerce in optimis rebus

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Texto para a 1ª Serie


Práticas públicas e práticas secretas

Apesar do caráter publico das manifestações sociais mais importantes, tanto no plano político como no plano religioso sobrevivem há a sobrevivência de praticas secretas. No domínio da religião, desenvolvem-se à margem da cidade e ao lado do culto público, associações fundadas secretamente. Seitas, confrarias e mistérios são grupos fechados, hierarquizados, comportando escalas e graus. Organizados sob o modelo das sociedades de iniciação, sua função é selecionar, por meio de uma série de provas, uma minoria de eleitos que se beneficiarão com privilégios inacessíveis ao comum. Mas, contrariamente às iniciações antigas às quais os jovens guerreiros (os couroi) eram submetidos e que lhes conferiam uma habilitação ao poder, os novos agrupamentos secretos são doravante confinados a um terreno puramente religioso. No quadro da cidade, a iniciação não pode mais trazer senão uma transformação "espiritual", sem repercussão política. Os eleitos, os epoptas, são puros, santos. Aparentados com o divino, estão certamente votados a um destino excepcional, mas conhecê-lo-ão no além. A promoção com que eles se beneficiam pertence a um outro mundo.

A todos que desejam conhecer a iniciação o mistério oferece, sem restrição de nascimento nem de classe, a promessa de uma imortalidade bem-aventurada, que era na origem privilégio exclusivamente real; divulga, no círculo mais amplo dos iniciados, os segredos religiosos que pertencem como propriedade particular a famílias sacerdotais como os Kérykes ou os Eumólpides. Mas, apesar dessa democratização de um privilégio religioso, o mistério em nenhum momento se coloca numa perspectiva de publicidade. Ao contrário, o que o define como mistério é a pretensão de atingir uma verdade inacessível por vias normais e que não poderia de maneira alguma ser "exposta"; é a pretensão de obter uma revelação tão excepcional que dá acesso a uma vida religiosa desconhecida do culto de Estado e que reserva aos iniciados uma sorte sem comparação com a condição ordinária do cidadão. O segredo toma assim, em contraste com a publicidade do culto oficial, uma significação religiosa particular: define uma religião de salvação pessoal visando transformar o indivíduo independentemente da ordem social, a realizar nele uma espécie de novo nascimento que o destaque do estatuto comum e o faça penetrar num plano de vida diferente.

Mas, nesse terreno, as pesquisas dos primeiros Sábios iam retomar as preocupações das seitas a ponto de se confundirem às vezes com elas. Os ensinamentos da Sabedoria, como as revelações dos mistérios. pretendem transformar o homem no íntimo, elevá-Io a uma condição superior, fazer dele um ser único, quase um deus, um theios anér. Se a cidade se dirige ao Sábio, quando se sente entregue à desordem e à impureza, se lhe pede a solução de seus males, é precisamente porque ele lhe aparece como um ser à parte, excepcional, um homem divino que todo seu gênero de vida isola e coloca à margem da comunidade. Reciprocamente, quando o Sábio se dirige à cidade, pela palavra ou por escrito, é sempre para transmitir-lhe uma verdade que vem do alto e que, mesmo divulgada, não deixa de pertencer a um outro mundo, estranho à vida ordinária. A primeira sabedoria constitui-se assim numa espécie de contradição em que se exprime sua natureza paradoxal: entrega ao público um saber que proclama ao mesmo tempo inacessível à maior parte. Não tem ele por objeto revelar o invisível, fazer ver esse mundo dos ádela que se dissimula atrás das aparências? A sabedoria revela uma verdade tão prestigiosa que deve ser paga ao preço de duros esforços e que fica, como a visão dos epoptas, oculta aos olhos do vulgo; exprime certamente o segredo, formula-o em palavras, mas o povo não pode apreender seu sentido. Leva o mistério para a praça pública; faz dele o objeto de um exame, de um estudo, sem deixar entretanto completamente de ser um mistério. Aos ritos de iniciação tradicionais que proibiam o acesso às revelações interditas, a sophia e a philosophia substituem outras provas: uma regra de vida, um caminho de ascese, uma via de pesquisa que, ao lado das técnicas de discussão, de argumentação ou dos novos instrumentos mentais como as matemáticas, conservam em seu lugar antigas práticas divinatórias, exercícios espirituais de concentração, de êxtase, de separação da alma e do corpo.

A filosofia vai encontrar-se, pois, ao nascer, numa posição ambígua: em seus métodos, em sua inspiração, aparentar-se-á ao mesmo tempo às iniciações dos mistérios e às controvérsias da ágora; flutuará entre o espírito de segredo próprio das seitas e a publicidade do debate contraditório que caracteriza a atividade política. Segundo os meios, os momentos, as tendências, ver-se-á que, como a seita pitagórica na Grande Grécia, no século VI, ela organiza-se em confraria fechada e recusa entregar à escrita uma doutrina puramente esotérica. Poderá também, como o fará o movimento dos Sofistas, integrar-se inteiramente na vida pública, apresentar-se como uma preparação ao exercício do poder na cidade e oferecer-se livremente a cada cidadão, mediante lições pagas a dinheiro. Dessa ambigüidade que marca sua origem, a filosofia grega talvez jamais se tenha libertado inteiramente. O filósofo não deixará de oscilar entre duas atitudes, de hesitar entre duas tentações contrárias. Ora afirmará ser o único qualificado para dirigir o Estado, e, tomando orgulhosamente a posição do rei-divino, pretenderá, em nome desse "saber" que o eleva acima dos homens, reformar toda a vida social e ordenar soberanamente a cidade. Ora ele se retirará do mundo para recolher-se numa sabedoria puramente privada; agrupando em tomo de si alguns discípulos, desejará com eles instaurar, na cidade, uma cidade diferente, à margem da primeira e, renunciando à vida pública, buscará sua salvação no conhecimento e na contemplação.


A ISONOMIA

Aos dois aspectos que assinalamos - prestígio da palavra, desenvolvimento das práticas públicas -, um outro traço se acrescenta para caracterizar o universo espiritual da polis. Os que compõem a cidade, por mais diferentes que sejam por sua origem, sua classe, sua função, aparecem de uma certa maneira "semelhantes" uns aos outros. Esta semelhança cria a unidade da polis porque, para os gregos,só os semelhantes podem encontrar-se mutuamente unidos pela Philia, associados numa mesma comunidade. O vínculo do homem com o homem vai tomar assim, no esquema da cidade, a forma de uma relação recíproca, reversível, substituindo as relações hierárquicas de submissão e de domínio. Todos os que participam do Estado vão definir-se como Hómoioi, semelhantes, depois, de maneira mais abstrata, como os Isoi, iguais.

Apesar de tudo o que os opõe no concreto da vida social, os cidadãos se concebem, no plano político, como unidades permutáveis no interior de um sistema cuja lei é o equilíbrio, cuja norma é a igualdade. Essa imagem do mundo humano encontrará no século VI sua expressão rigorosa num conceito, o de isonomia: igual participação de todos os cidadãos no exercício do poder. Mas antes de adquirir esse valor plenamente democrático e de inspirar, no plano institucional, reformas como as de Clístenes, o ideal de isonomia pôde traduzir ou prolongar aspirações comunitárias que remontam muito mais alto, até as origens da polis. Vários testemunhos mostram que os termos isonomia, isocratia, serviram, em círculos aristocráticos, para definir, por oposição ao poder absoluto de um só (a monarchia ou a tyrannía), um regime oligárquico em que a arché é reservada a um pequeno número, excetuando-se a massa, mas é partilhada de maneira igual entre todos os membros dessa elite. Se a exigência de isonomia pôde adquirir no fim do século VI uma tal força, pôde-se justificar a reivindicação popular de um livre acesso do demos a todas as magistraturas, foi sem dúvida porque se enraizava numa tradição igualitária muito antiga, foi porque correspondia mesmo a certas atitudes psicológicas da aristocracia dos hippeis. É, com efeito, essa nobreza militar que estabelece pela primeira vez, entre a qualificação guerreira e o direito de participar nos negócios públicos, uma equivalência que não será mais discutida. Na polis, o estado de soldado coincide com o de cidadão: quem tem seu lugar na formação militar da cidade igualmente o tem na sua organização política. Ora, desde o meio do século VII, as modificações do armamento e uma revolução na técnica do combate transformam o personagem do guerreiro, renovam seu estatuto social e seu retrato psicológico. O aparecimento do hoplita, pesadamente armado, combatendo em linha, e seu emprego em formação cerrada segundo o princípio da falange dão um golpe decisivo nas prerrogativas militares dos hippeis. Todos os que podem fazer as despesas de seu equipamento de hoplitas - isto é, os pequenos proprietários livres que formam o demos, como são em Atenas os zeugitas -, acham-se colocados no mesmo plano que os possuidores de cavalos.

Mas, mesmo neste caso, a democratização da função militar - antigo privilégio aristocrático - causa uma transformação completa da ética do guerreiro. O herói homérico, o bom .condutor de carros, podia ainda sobreviver na pessoa do hippeus; já não tem muita coisa em comum com o hoplita, esse soldado-cidadão. O que contava para o primeiro era a façanha individual, a proeza feita em combate singular. Na batalha, mosaico de duelos em que se enfrentam os prómachoi, o valor militar afirmava-se sob forma de uma aristeia, de uma superioridade toda pessoal. A audácia que permitia ao guerreiro executar aquelas ações brilhantes, encontrava-a numa espécie de exaltação, de furor belicoso, a lyssa, onde o lançava, como fora de si mesmo, o menos, o ardor inspirado por um deus. Mas o hoplita já não conhece o combate singular; deve recusar, se se lhe oferece, a tentação de uma proeza puramente individual. É o homem da batalha de braço a braço, da luta ombro a ombro. Foi treinado em manter a posição, marchar em ordem, lançar-se com passos iguais contra o inimigo, cuidar, no meio da peleja, de não deixar seu posto. A virtude guerreira não é mais da ordem do thymós; é feita .de sophrosyne: um domínio completo de si, um constante controle para submeter-se a uma disciplina comum, o sangue frio necessário para refrear os impulsos instintivos que correriam o risco de perturbar a ordem geral da formação. A falange faz do hoplita, como a cidade faz do cidadão, uma unidade permutável, um elemento semelhante a todos os outros, e cuja aristeia, o valor individual, não deve jamais se manifestar senão no quadro imposto pela manobra de conjunto, pela coesão de grupo, pelo efeito de massa, novos instrumentos da vitória. Até na guerra, a Eris, o desejo de triunfar do adversário, de afirmar sua superioridade sobre outrem, deve submeter-se à Philia, ao espírito de comunidade; o poder dos indivíduos deve inclinar-se diante da lei do grupo. Heródoto. ao mencionar, após cada narrativa de batalha, os nomes das cidades e dos indivíduos que se mostraram os mais valentes em Platéia, dá a palma, entre os espartanos, a Aristodamo: o homem fazia parte dos trezentos lacedemônios que tinham defendido as Termópilas; só ele tinha voltado são e salvo; preocupado em lavar o opróbrio que os espartanos ligavam a essa sobrevivência, procurou e encontrou a morte em Platéia ao realizar façanhas admiráveis. Mas não foi a ele que os espartanos concederam, com o prêmio da bravura, as honras fúnebres devidas aos melhores; recusaram-lhe a aristeia porque, combatendo furiosamente, como um homem alucinado pela lyssa, tinha abandonado seu posto.

A narrativa ilustra de maneira surpreendente uma atitude psicológica que não se manifesta somente no domínio da guerra, mas que, em todos os planos da vida social, marca uma viragem decisiva na história da Polis. Chega um momento em que a cidade rejeita as atitudes tradicionais da aristocracia tendentes a exaltar o prestígio, a reforçar o poder dos indivíduos e dos gene, a elevá-Ios acima do comum. São assim condenados como descomedimento, como hybris - do mesmo modo que o furor guerreiro e a busca no combate de uma glória puramente particular - a ostentação da riqueza, o luxo das vestimentas, a suntuosidade dos funerais, as manifestações excessivas da dor em caso de luto, um comportamento muito ostensivo das mulheres ou o comportamento demasiado seguro, demasiado audacioso da juventude nobre.

Texto para a 1ª Serie

O UNIVERSO ESPIRITUAL DA POLIS

Jean Pierre Vernant

O aparecimento da polis constitui, na história do pensamento grego, um acontecimento decisivo. Certamente, no plano intelectual como no domínio das instituições, só no fim alcançará todas as suas conseqüências; a polis conhecerá etapas múltiplas e formas variadas. Entretanto, desde seu advento, que se pode situar entre os séculos VIII e VII marca um começo, uma verdadeira invenção; por ela a vida social e as relações entre os homens tomam uma forma nova, cuja originalidade será plenamente sentida pelos gregos.

O que implica o sistema da polis é primeiramente uma extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos do poder. Torna-se o instrumento político por excelência, a chave de toda autoridade no Estado, o meio de comando e de domínio sobre outrem. Esse poder da palavra - de que os gregos farão uma divindade: Peithó, a força de persuasão - lembra a eficácia das palavras e das fórmulas em certos rituais religiosos, ou o valor atribuído aos "ditos" do rei quando pronuncia soberanamente a themis; entretanto, trata-se na realidade de coisa bem diferente. A palavra não é mais o termo ritual, a fórmula justa, mas o debate contraditório, a discussão, a argumentação. Supõe um público ao qual ela se dirige como a um juiz que decide em última instância, de mãos erguidas, entre os dois partidos que lhe são apresentados; é essa escolha puramente humana que mede a força de persuasão respectiva dos dois discursos, assegurando a vitória de um dos oradores sobre seu adversário.

Todas as questões de interesse geral que o Soberano linha por função regularizar e que definem o campo da arché são agora submetidas à arte oratória e deverão resolver-se na conclusão de um debate; é preciso, pois, que possam ser formuladas em discursos, amoldadas às demonstrações antitéticas e às argumentações opostas. Entre a política e o logos, há assim relação estreita, vínculo recíproco. A arte política é essencialmente exercício da linguagem; e o logos, na origem, toma consciência de si mesmo, de suas regras, de sua eficácia, por intermédio de sua função política. Historicamente, são a retórica e a sofística que, pela análise que empreendem das formas do discurso como instrumento de vitória nas lutas da assembléia e do tribunal, abrem caminho às pesquisas de Aristóteles ao definir; ao lado de uma técnica da persuasão, regras da demonstração e ao pôr uma lógica do verdadeiro, própria do saber teórico, em face da lógica do verossímil ou do provável, que preside aos debates arriscados na prática.

Uma segunda característica da polis é o cunho de plena publicidade dada às manifestações mais importantes da vida social. Pode-se mesmo dizer que a polis existe apenas na medida em que se distinguiu um domínio público, nos dois sentidos diferentes, mas solidários do termo: um setor de interesse comum, opondo-se aos assuntos privados; práticas abertas, estabelecidas em pleno dia, opondo-se a processos secretos. Essa exigência de publicidade leva a apreender progressivamente em proveito do grupo e a colocar sob o olhar de todos o conjunto das condutas, dos processos, dos conhecimentos que constituíam na origem o privilégio exclusivo do basileus ou dos gene detentores da arché. Esse duplo movimento de democratização e de divulgação terá, no plano intelectual, conseqüências decisivas. A cultura grega constitui-se, dando a um círculo sempre mais amplo - finalmente ao demos todo - o acesso ao mundo espiritual, reservado no início a uma aristocracia de caráter guerreiro e sacerdotal (a epopéia homérica é um primeiro exemplo desse processo: uma poesia de corte, cantada primeiramente nas salas dos palácios; depois sai deles, desenvolve-se e transpõe-se em poesia de festa). Mas esse desenvolvimento comporta uma profunda transformação.

Tomando-se elementos de uma cultura comum, os conhecimentos, os valores, as técnicas mentais são levados à praça pública, sujeitos à crítica e à controvérsia. Não são mais conservados, como garantia de poder, no recesso de tradições familiares; sua publicação motivará exegeses, interpretações diversas, oposições, debates apaixonados. Doravante, a discussão, a argumentação, a polêmica tornam-se as regras do jogo intelectual, assim como do jogo político. O controle constante da comunidade se exerce sobre as criações do espírito, assim como sobre as magistraturas do Estado. A lei da polis, por oposição ao poder absoluto do monarca, exige que umas e outras sejam igualmente submetidas à "prestação de contas". Já se não impõem pela força de um prestígio pessoal ou religioso; devem mostrar sua retidão por processos de ordem dialética.

Era a palavra que formava, no quadro da cidade, o instrumento da vida política: é a escrita que vai fornecer, no plano propriamente intelectual, o meio de uma cultura comum e permitir uma completa divulgação de conhecimentos previamente reservados ou interditos. Tomada dos fenícios e modificada por uma transcrição mais precisa dos sons gregos, a escrita poderá satisfazer essa função de publicidade porque ela própria se tomou, quase com o mesmo direito da língua falada, o bem comum de todos os cidadãos. As mais antigas inscrições em alfabeto grego que conhecíamos mostram que, desde o século VIII, não se trata mais de um saber especializado, reservado a escribas, mas de uma técnica de amplo uso, livremente difundida no público. Ao lado da recitação decorada de textos de Homero ou de Hesíodo - que continua sendo tradicional-, a escrita constituirá o elemento de base da paideia grega.

Compreende-se assim o alcance de uma reivindicação que surge desde o nascimento da cidade: a redação das leis. Ao escrevê-las, não se faz mais que assegurar-lhes permanência e fixidez. Subtraem-se à autoridade privada dos basileis, cuja função era "dizer" o direito; tornam-se bem comum, regra geral, suscetível de ser aplicada a todos da mesma maneira. No mundo de Hesíodo, anterior ao regime da Cidade, a dike atuava ainda em dois planos, como dividida entre o céu e a terra: para o pequeno cultivador beócio, a dike é, neste mundo, uma decisão de fato dependente da arbitrariedade dos reis "comedores de presentes"; no céu, é uma divindade soberana, mas longínqua e inacessível. Ao contrário, pela publicidade que lhe confere a escrita, a dike, sem deixar de aparecer como um valor ideal, vai poder encarnar-se num plano propriamente humano, realizar-se na lei, regra comum a todos, mas superior a todos, norma racional, sujeita à discussão e modificável por decreto, mas que nem por isso deixa de exprimir uma ordem concebida como sagrada.

Quando, por sua vez, os indivíduos decidirem tornar público o seu saber por meio da escrita, seja sob forma de livro como os que Anaximandro e Ferecides teriam sido os primeiros a escrever ou como o que Herác1ito depositaria no templo de Ártemis em Éfeso, seja sob forma de parápegma, inscrição monumental em pedra, análoga às que a cidade faz gravar em nome de seus magistrados ou de seus sacerdotes (cidadãos particulares nelas inscreverão observações astronômicas ou tábuas de cronologia), sua ambição não será fazer conhecer a outros uma descoberta ou uma opinião pessoais; o que vão querer, depositando sua mensagem em público é fazer dela o bem comum da cidade, uma norma suscetível, como a lei, de impor-se a todos. Uma vez divulgada, sua sabedoria toma uma consistência e uma objetividade novas: ela constitui-se em si mesma como verdade. Não se trata mais de um segredo religioso, reservado a alguns eleitos, favorecidos por uma graça divina. Certamente, a verdade do sábio, como o segredo religioso, é revelação do essencial, descoberta de uma realidade superior que ultrapassa muito o comum dos homens; mas, entregue à escrita, ela é destacada do círculo fechado das seitas para ser exposta em plena luz aos olhares da cidade inteira; isto significa reconhecer que ela é por direito acessível a todos, aceitar submetê-la, como o debate político, ao julgamento de todos, com a esperança de que em definitivo será por todos aceita e reconhecida.
Essa transformação de um saber secreto de tipo esotérico num corpo de verdades divulgadas no público tem seu paralelo num outro setor da vida social. Os antigos sacerdócios pertenciam como propriedade particular a certos gene e marcavam seu parentesco especial com um poder divino; a polis, quando é constituída, confisca-os em seu proveito e os transforma em cultos oficiais da cidade. A proteção que a divindade reservava outrora a seus favoritos vai doravante exercer-se em benefício da comunidade toda. Mas quem diz culto de cidade diz culto público. Todos os antigos sacra, sinais de investidura, símbolos religiosos, brasões. xóana de madeira, zelosamente conservados como talismãs de poderio no recesso dos palácios ou no fundo das casas de sacerdote, vão emigrar para o templo, morada aberta, morada pública. Nesse espaço impessoal que se volta para fora e doravante projetar no exterior a decoração de seus frisos esculpidos, os velhos ídolos transformam-se por sua vez: perdem, com seu caráter secreto, sua virtude de símbolo eficaz; eis que se tornam "imagens", sem outra função ritual senão a de serem vistos, sem outra realidade religiosa senão sua aparência. Da grande estátua cultual alojada no templo para nele manifestar o deus, poder-se-ia dizer que todo seu ser consiste doravante em um ser percebida. Os sacra, outrora carregados de uma força perigosa e não expostos à vista do público, tornam-se sob o olhar da cidade um espetáculo, um "ensinamento sobre os deuses", como sob o olhar da cidade, as narrativas secretas, as fórmulas ocultas se despojam de seu mistério e seu poder religioso para se tomarem as "verdades" que os Sábios vão debater.

Entretanto, não é sem dificuldade nem sem resistência que a vida social é assim entregue a uma publicidade completa. O processo de divulgação faz-se por etapas; encontra, em todos os domínios, obstáculos que limitam seus progressos.Mesmo no plano político, práticas de governo secreto mantêm, em pleno período clássico, uma forma de poder que opera por vias misteriosas e meios sobrenaturais. O regime de Esparta oferece os melhores exemplos desses processos secretos.