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Animum exerce in optimis rebus

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Texto para a 1ª Serie

O UNIVERSO ESPIRITUAL DA POLIS

Jean Pierre Vernant

O aparecimento da polis constitui, na história do pensamento grego, um acontecimento decisivo. Certamente, no plano intelectual como no domínio das instituições, só no fim alcançará todas as suas conseqüências; a polis conhecerá etapas múltiplas e formas variadas. Entretanto, desde seu advento, que se pode situar entre os séculos VIII e VII marca um começo, uma verdadeira invenção; por ela a vida social e as relações entre os homens tomam uma forma nova, cuja originalidade será plenamente sentida pelos gregos.

O que implica o sistema da polis é primeiramente uma extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos do poder. Torna-se o instrumento político por excelência, a chave de toda autoridade no Estado, o meio de comando e de domínio sobre outrem. Esse poder da palavra - de que os gregos farão uma divindade: Peithó, a força de persuasão - lembra a eficácia das palavras e das fórmulas em certos rituais religiosos, ou o valor atribuído aos "ditos" do rei quando pronuncia soberanamente a themis; entretanto, trata-se na realidade de coisa bem diferente. A palavra não é mais o termo ritual, a fórmula justa, mas o debate contraditório, a discussão, a argumentação. Supõe um público ao qual ela se dirige como a um juiz que decide em última instância, de mãos erguidas, entre os dois partidos que lhe são apresentados; é essa escolha puramente humana que mede a força de persuasão respectiva dos dois discursos, assegurando a vitória de um dos oradores sobre seu adversário.

Todas as questões de interesse geral que o Soberano linha por função regularizar e que definem o campo da arché são agora submetidas à arte oratória e deverão resolver-se na conclusão de um debate; é preciso, pois, que possam ser formuladas em discursos, amoldadas às demonstrações antitéticas e às argumentações opostas. Entre a política e o logos, há assim relação estreita, vínculo recíproco. A arte política é essencialmente exercício da linguagem; e o logos, na origem, toma consciência de si mesmo, de suas regras, de sua eficácia, por intermédio de sua função política. Historicamente, são a retórica e a sofística que, pela análise que empreendem das formas do discurso como instrumento de vitória nas lutas da assembléia e do tribunal, abrem caminho às pesquisas de Aristóteles ao definir; ao lado de uma técnica da persuasão, regras da demonstração e ao pôr uma lógica do verdadeiro, própria do saber teórico, em face da lógica do verossímil ou do provável, que preside aos debates arriscados na prática.

Uma segunda característica da polis é o cunho de plena publicidade dada às manifestações mais importantes da vida social. Pode-se mesmo dizer que a polis existe apenas na medida em que se distinguiu um domínio público, nos dois sentidos diferentes, mas solidários do termo: um setor de interesse comum, opondo-se aos assuntos privados; práticas abertas, estabelecidas em pleno dia, opondo-se a processos secretos. Essa exigência de publicidade leva a apreender progressivamente em proveito do grupo e a colocar sob o olhar de todos o conjunto das condutas, dos processos, dos conhecimentos que constituíam na origem o privilégio exclusivo do basileus ou dos gene detentores da arché. Esse duplo movimento de democratização e de divulgação terá, no plano intelectual, conseqüências decisivas. A cultura grega constitui-se, dando a um círculo sempre mais amplo - finalmente ao demos todo - o acesso ao mundo espiritual, reservado no início a uma aristocracia de caráter guerreiro e sacerdotal (a epopéia homérica é um primeiro exemplo desse processo: uma poesia de corte, cantada primeiramente nas salas dos palácios; depois sai deles, desenvolve-se e transpõe-se em poesia de festa). Mas esse desenvolvimento comporta uma profunda transformação.

Tomando-se elementos de uma cultura comum, os conhecimentos, os valores, as técnicas mentais são levados à praça pública, sujeitos à crítica e à controvérsia. Não são mais conservados, como garantia de poder, no recesso de tradições familiares; sua publicação motivará exegeses, interpretações diversas, oposições, debates apaixonados. Doravante, a discussão, a argumentação, a polêmica tornam-se as regras do jogo intelectual, assim como do jogo político. O controle constante da comunidade se exerce sobre as criações do espírito, assim como sobre as magistraturas do Estado. A lei da polis, por oposição ao poder absoluto do monarca, exige que umas e outras sejam igualmente submetidas à "prestação de contas". Já se não impõem pela força de um prestígio pessoal ou religioso; devem mostrar sua retidão por processos de ordem dialética.

Era a palavra que formava, no quadro da cidade, o instrumento da vida política: é a escrita que vai fornecer, no plano propriamente intelectual, o meio de uma cultura comum e permitir uma completa divulgação de conhecimentos previamente reservados ou interditos. Tomada dos fenícios e modificada por uma transcrição mais precisa dos sons gregos, a escrita poderá satisfazer essa função de publicidade porque ela própria se tomou, quase com o mesmo direito da língua falada, o bem comum de todos os cidadãos. As mais antigas inscrições em alfabeto grego que conhecíamos mostram que, desde o século VIII, não se trata mais de um saber especializado, reservado a escribas, mas de uma técnica de amplo uso, livremente difundida no público. Ao lado da recitação decorada de textos de Homero ou de Hesíodo - que continua sendo tradicional-, a escrita constituirá o elemento de base da paideia grega.

Compreende-se assim o alcance de uma reivindicação que surge desde o nascimento da cidade: a redação das leis. Ao escrevê-las, não se faz mais que assegurar-lhes permanência e fixidez. Subtraem-se à autoridade privada dos basileis, cuja função era "dizer" o direito; tornam-se bem comum, regra geral, suscetível de ser aplicada a todos da mesma maneira. No mundo de Hesíodo, anterior ao regime da Cidade, a dike atuava ainda em dois planos, como dividida entre o céu e a terra: para o pequeno cultivador beócio, a dike é, neste mundo, uma decisão de fato dependente da arbitrariedade dos reis "comedores de presentes"; no céu, é uma divindade soberana, mas longínqua e inacessível. Ao contrário, pela publicidade que lhe confere a escrita, a dike, sem deixar de aparecer como um valor ideal, vai poder encarnar-se num plano propriamente humano, realizar-se na lei, regra comum a todos, mas superior a todos, norma racional, sujeita à discussão e modificável por decreto, mas que nem por isso deixa de exprimir uma ordem concebida como sagrada.

Quando, por sua vez, os indivíduos decidirem tornar público o seu saber por meio da escrita, seja sob forma de livro como os que Anaximandro e Ferecides teriam sido os primeiros a escrever ou como o que Herác1ito depositaria no templo de Ártemis em Éfeso, seja sob forma de parápegma, inscrição monumental em pedra, análoga às que a cidade faz gravar em nome de seus magistrados ou de seus sacerdotes (cidadãos particulares nelas inscreverão observações astronômicas ou tábuas de cronologia), sua ambição não será fazer conhecer a outros uma descoberta ou uma opinião pessoais; o que vão querer, depositando sua mensagem em público é fazer dela o bem comum da cidade, uma norma suscetível, como a lei, de impor-se a todos. Uma vez divulgada, sua sabedoria toma uma consistência e uma objetividade novas: ela constitui-se em si mesma como verdade. Não se trata mais de um segredo religioso, reservado a alguns eleitos, favorecidos por uma graça divina. Certamente, a verdade do sábio, como o segredo religioso, é revelação do essencial, descoberta de uma realidade superior que ultrapassa muito o comum dos homens; mas, entregue à escrita, ela é destacada do círculo fechado das seitas para ser exposta em plena luz aos olhares da cidade inteira; isto significa reconhecer que ela é por direito acessível a todos, aceitar submetê-la, como o debate político, ao julgamento de todos, com a esperança de que em definitivo será por todos aceita e reconhecida.
Essa transformação de um saber secreto de tipo esotérico num corpo de verdades divulgadas no público tem seu paralelo num outro setor da vida social. Os antigos sacerdócios pertenciam como propriedade particular a certos gene e marcavam seu parentesco especial com um poder divino; a polis, quando é constituída, confisca-os em seu proveito e os transforma em cultos oficiais da cidade. A proteção que a divindade reservava outrora a seus favoritos vai doravante exercer-se em benefício da comunidade toda. Mas quem diz culto de cidade diz culto público. Todos os antigos sacra, sinais de investidura, símbolos religiosos, brasões. xóana de madeira, zelosamente conservados como talismãs de poderio no recesso dos palácios ou no fundo das casas de sacerdote, vão emigrar para o templo, morada aberta, morada pública. Nesse espaço impessoal que se volta para fora e doravante projetar no exterior a decoração de seus frisos esculpidos, os velhos ídolos transformam-se por sua vez: perdem, com seu caráter secreto, sua virtude de símbolo eficaz; eis que se tornam "imagens", sem outra função ritual senão a de serem vistos, sem outra realidade religiosa senão sua aparência. Da grande estátua cultual alojada no templo para nele manifestar o deus, poder-se-ia dizer que todo seu ser consiste doravante em um ser percebida. Os sacra, outrora carregados de uma força perigosa e não expostos à vista do público, tornam-se sob o olhar da cidade um espetáculo, um "ensinamento sobre os deuses", como sob o olhar da cidade, as narrativas secretas, as fórmulas ocultas se despojam de seu mistério e seu poder religioso para se tomarem as "verdades" que os Sábios vão debater.

Entretanto, não é sem dificuldade nem sem resistência que a vida social é assim entregue a uma publicidade completa. O processo de divulgação faz-se por etapas; encontra, em todos os domínios, obstáculos que limitam seus progressos.Mesmo no plano político, práticas de governo secreto mantêm, em pleno período clássico, uma forma de poder que opera por vias misteriosas e meios sobrenaturais. O regime de Esparta oferece os melhores exemplos desses processos secretos.

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